Palavras Entrevista: Fran Jaraba
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Kizua é um menino de nove anos que, certa noite, é surpreendido pelo ataque de mercadores de escravos a sua comunidade, no interior da África, e, junto a seus pais, é levado à força até o mar, que tanto desejava conhecer!
Flutuando sobre aquelas águas, porém, o menino vê algo que ao mesmo tempo o aterroriza e fascina: um enorme navio negreiro. Assim teve início a jornada de Kizua pelas entranhas de Quimera, uma das experiências mais terríveis que alguém pode viver, ainda mais sendo criança...
Sabe-se que essa mesma história foi vivida por milhões de africanos, que foram escravizados e trazidos da África para a América entre os séculos XVI e XIX. Essa foi a maior e mais brutal diáspora de toda a história da humanidade.
Prepare-se para essa viagem, emocionante e cruel, ao lado de Kizua.
A ideia de Quimera não foi minha. Essa narrativa foi originalmente encomendada por Jonathan Portela, colega do curso de História na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Era final de 2013, um ano bem difícil: na faculdade, no âmbito pessoal, para todos de um país mergulhado em intensas ondas de protestos, cujos ecos escutamos até hoje – mas ainda não sabíamos disso.
Músico de formação, Jonathan tinha planos de compor uma peça musical para um concurso, baseada em uma narrativa. Em vez de buscar inspiração em algo conhecido, ele me perguntou se eu poderia escrever um conto sobre um menino de nove anos que, com seus pais, era sequestrado e levado para dentro de um navio negreiro.
Jonathan apresentou uma noção geral da história que desejava, seu início e alguns eventos, que para dar ritmo à peça musical precisavam acontecer ao longo da narrativa. O final estava aberto e eu poderia decidir sobre o desfecho. Anotei as orientações e fui ler textos sobre o tráfico de escravizados, a história da África e, claro, algumas das poucas narrativas de pessoas escravizadas que ainda existem.
A crueldade desse comércio de almas não era novidade, principalmente para uma estudante no quarto ano de graduação em História. Mas é impossível ler sobre esse passado, fechar os livros e seguir a vida como se nada tivesse acontecido. A gente quer contar ao mundo sobre a injustiça, alertar todos desse terror na trajetória da humanidade. Sob o impacto dessas leituras, fui rascunhar o conto.
Eu poderia ter decidido matar Kizua ou deixado o navio chegar à costa daquele território que ainda não era o Brasil. E esse menino que já perdera tudo teria começado uma vida como escravizado, provavelmente trabalhando em um engenho de cana‑de‑açúcar ou nas minas de ouro. Embora não seja explícito, o conto se passa no século XVIII.
Quando terminei a primeira versão da narrativa, em janeiro de 2014, optei por deixar o final aberto. O enredo terminava na cena em que Kizua se aninha nos braços da “mãe”, desenhada na parede do navio, e o leitor poderia imaginar o final que julgasse mais adequado.
Vale mencionar que os originais, naquela época, estavam nomeados apenas como Navio Negreiro, que, ao lado de Kizua, é também protagonista da história. Foi somente após as releituras e refinamentos posteriores que o conto se tornou Quimera, inspirado na figura do monstro mitológico formado por partes de diferentes animais.
A palavra quimera, ao longo do tempo, passou a ser usada muitas vezes para definir algo impossível, uma ideia falsa, uma vã imaginação, como explicitou em seu verbete o literato argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), em O Livro dos Seres Imaginários, Quimera era a expressão ideal para definir o monstro-navio da história de Kizua, essa criatura gigantesca, de asas, que caminha sobre as águas, devorando as almas daqueles aprisionados em seu estômago.
A história de Quimera ficou guardada em uma gaveta por anos, pois a peça musical composta por Jonathan, junto com Luiz Fernandes Neto, nunca chegou a ser oficialmente gravada. Assim, enquanto Lily Carroll desenhava as belíssimas ilustrações que hoje dão forma aos pesadelos de Kizua, eu às vezes abria as páginas do conto, mudava uma palavra, acrescentava uma frase, cortava outra.
Mas os eventos permaneceram, em sua essência, quase os mesmos daqueles finalizados em 2014. Existia, porém, um incômodo que só ficou claro para mim conforme fui me aprofundando em discussões sobre representatividade, conversando com pessoas ligadas ao movimento negro e aos estudos africanos.
O final de Quimera não precisava ficar aberto. A despeito da minha formação em História e de todas as leituras que fiz para dar o máximo de realidade possível à trajetória de Kizua, a verdade é que o escritor tem todo o poder do mundo sobre sua narrativa enquanto a escreve (depois, é claro, o poder é do leitor). Decidi então que, apesar de toda a tragédia narrada, eu estava escrevendo uma ficção: Kizua não seria morto nem escravizado. Tomaria os rumos de sua história nas mãos. E hoje vejo Kizua certa de que ele teve um futuro melhor do aquele reservado a muitos outros no tempo presente de sua narrativa.
Quimera foi uma criação que me fez sair da minha zona de conforto. Um desafio distante do meu estilo habitual, dos temas, das histórias e da linguagem que estou acostumada a usar em meus trabalhos. A verdade é que, a princípio, me assustei: no momento em que pisei nas areias daquela praia e dei de frente com a imensidão do oceano e dos navios negreiros, corri chorando, até encontrar os braços de minha maior influência artística – as histórias em quadrinhos (HQs).
Para dar traços e forma à história de Kizua, busquei orientação nos trabalhos do quadrinista estadunidense John Romita Jr. (1956-) e do italiano Guido Crepax (1933-2003). Mas ainda faltava algo que não achei nas HQs. Foi quando conheci, para minha sorte, os trabalhos do pernambucano Darel Valença Lins (1924-2017), em uma exposição na Caixa Cultural, em São Paulo.
Em suas gravuras, encontrei traços e sonhos, a atmosfera que eu precisava, de linhas mais pesadas, de forte influência da xilogravura. Para a produção das ilustrações, optei pelo trabalho manual em papel couché fosco, cuja textura mais lisa permitia maior foco no traço. Bicos de pena, nanquim e canetas especiais foram usadas para executar diversas técnicas de hachura e pontilhismo, que estão presentes nas personagens e no cenário que compõem essa tortuosa jornada pelos olhos de uma criança.
Quimera levou mais de seis anos para ser concluído. A cada nova ilustração é possível notar a diferença do traço e os vários diálogos com outros artistas.
Agora, fico ao lado de Kizua, na proa do navio-monstro, enquanto nos afastamos para cada vez mais longe de onde partimos.
Por muito tempo, por todo o tempo que levou para chegarem às águas sem fim, você achou, você teve certeza de que foi algo que você fez. Você sempre quis ver o mar, mas não daquele jeito. Não quando tudo começou com um grito seu.
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Confira a entrevista da autora de Quimera , Celeste Baumann, para o blog da Palavras. Na conversa, ela aborda o processo de...
Nascida em 1984, Celeste Baumann ganhou esse nome em homenagem a uma das professoras de sua mãe. A casa onde cresceu tinha duas estantes repletas de livros. Mas, como a maioria das crianças de sua geração, passava boa parte do tempo assistindo desenhos animados e brincando com seus irmãos e irmãs. Muitas vezes, porém, preferia se esconder e inventar histórias e aventuras para suas bonecas.
Com a ajuda da mãe, tornou-se, aos sete anos, a primeira aluna de sua classe a conseguir ler um texto completo: o poema que abria o livro Pássaros feridos, da escritora australiana Colleen McCullough (1937-2015). O ocorrido consolidou o interesse pela leitura, que se tornou mais pronunciado após o seu aniversário de dez anos, quando ganhou o livro O menino mágico, de Rachel de Queiroz (1910-2003). Foi a primeira obra que Celeste leu sozinha e de uma única vez, relendo-a muitas vezes desde então.
Veio então Júlio Verne, Agatha Christie, Pedro Bandeira e vários dos livros da clássica coleção Vaga-Lume. Nessa mesma época, Celeste se tornou fã de Cavaleiros do Zodíaco, desenho que iria marcar seu interesse por quadrinhos e animação japonesa durante toda a adolescência e início da vida adulta.
Aos 12 anos, na escola, escreveu e desenhou uma história em quadrinhos sobre as aventuras de um relógio de pulso. Crescia, assim, a vontade trabalhar com desenho, o que a levou a ingressar no curso técnico de Desenho de Comunicação, onde conheceu Lily Carroll, também fã de quadrinhos e animações. Tornaram-se amigas e parceiras artísticas.
Com 16 anos, Celeste publicou seu primeiro texto em uma revista de música: uma reportagem sobre o concerto da banda Guns N’ Roses no Rock in Rio III. Mudava, assim, o foco para a escrita e iria trabalhar como redatora. Ao concluir o Ensino Médio, tornou‑se editora em revistas de entretenimento, enquanto em seu tempo livre escrevia, sob pseudônimo, dezenas de fanfics e produzia fanzines sobre personagens de animações, livros, videogames, quadrinhos, filmes e séries de TV.
Com 26 anos, ingressou no curso de História da Universidade Federal de São Paulo, onde se interessou por História Medieval e participou de grupos de pesquisa sobre o uso de tecnologias no estudo da História. Em 2011, venceu o concurso de contos promovido pela universidade, com uma história sobre um apocalipse zumbi. Em 2012, selecionada em um programa de intercâmbios, foi estudar em Portugal. De volta ao Brasil, publicou seu primeiro conto original em uma coletânea de fantasia com temática LGBTQIA+.
Desde 2014, Celeste trabalha como editora de livros didáticos da área de Ciências Humanas. Em 2020, Quimera veio a público pela primeira vez, em uma campanha de financiamento coletivo. No mesmo ano, Celeste também teve um conto escolhido para uma coletânea focada em personagens femininas, e foi selecionada no edital Arte como Respiro – Literatura, de uma conhecida instituição cultural brasileira, que tinha o objetivo de premiar microcontos sobre a vida no pós-pandemia.
Lily Carroll nasceu em São Paulo, em 1981. Chamava-se Karina, referência a uma das personagens da novela Pai Herói. Em 2000, passou a publicar ilustrações e histórias na internet e desejava outro nome, algo irônico e bonitinho e uma homenagem explícita a um de seus escritores preferidos, Lewis Carroll. Surgia assim seu nome artístico!
Lilly cresceu na periferia de São Paulo como uma voraz frequentadora das bibliotecas das escolas e dos bairros da Zona Leste, devorando todo livro que conseguia alcançar. Assídua frequentadora de sebos, ela gastava todo seu dinheiro em revistas de histórias em quadrinhos da Marvel, da DC e de terror nacional. Teimava com os pais para que comprassem o jornal Notícias Populares, atraída pelas fotografias e a linguagem informal (sonhava em trabalhar naquele periódico!).
Sempre adorou tudo o que era associado ao chamado universo nerd, em especial a animação Cavaleiros do Zodíaco: porta de entrada de muitos jovens daquela geração para o mundo de animes e mangás. Acabou deixando de lado o sonho do jornal popular e mergulhou nos desenhos.
Cursou o técnico de Desenho de Comunicação (atualmente chamado Comunicação Visual), no qual, além de aprender desenho geométrico e noções de perspectiva, conheceu Celeste Baumann, parceira de trabalhos escolares e amiga com quem dividia a paixão por animes e mangás. A cumplicidade rendeu também fanzines dedicados aos seus personagens favoritos, divulgados em eventos de cultura pop.
O curso técnico abriu várias possibilidades de trabalho com desenhos, apresentando artistas, estilos, movimentos e todo um novo universo sobre a arte da comunicação. Além de desenhar, Lily também trabalhou como redatora de publicações de cultura pop nas editoras Escala e Minuano, foi revisora técnica do estúdio e editora Criativo Mercado Editorial e trabalhou como editora‑chefe nas publicações Anime>Do e Neo Tokyo, ambas dedicadas à animação japonesa. Atualmente tem realizado trabalhos com foco em temas LGBTQIA+ e participado de feiras de quadrinhos.
Quimera é um conto escrito por uma historiadora. Em sua redação, algumas liberdades foram tomadas, mas bem menos do que hoje todos desejariam. A história da humanidade é composta por alguns momentos terríveis, que a ficção não tem o direito de se desviar, para o nosso próprio bem.
Assim, para conhecer mais de perto as histórias dos muitos Kizuas que povoaram nosso passado, não deixe de ler algumas das fontes consultadas para a escrita de Quimera. Muitos desses materiais estão disponíveis para consulta on-line, como parte da biografia de Mahommah Gardo Baquaqua, africano escravizado trazido para o Brasil no início do século XIX. A epígrafe no início do livro foi retirada do seu relato.
AJAYI, J. F. Ade (Ed.). História Geral da África, vol. VI: África do século XIX à década de 1880. Brasília: UNESCO, 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/?option=com_content&view=article&id=16146. Acesso em: 28 fev. 2021.
BÂ, Amadou Hampâté. Amkoullel, o Menino Fula. Tradução de Xina Smith de Vasconcellos. São Paulo: Palas Athena; Casa das Áfricas, 2003.
BAQUAQUA, Mahommah Gardo. Biografia de Mahommah G. Baquaqua. In: LARA, Silvia Hunold (Apres.); NUSSENZWEIG, Sonia (Trad.). Revista Brasileira de História – Escravidão, ANPUH, Marco Zero, vol. 08, n. 16, p. 269-284, mar./ago., 1988. Disponível em: www.anpuh.org/revistabrasileira/view?ID_REVISTA_BRASILEIRA=25. Acesso em: 28 fev. 2021.
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Editora Unesp, 2014.
LOVEJOY, Paul E. Identidade e a Miragem da Etnicidade: a jornada de Mahommah Gardo Baquaqua para as Américas. Afro-Ásia, vol. 27, p. 9-39, 2002. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/21031. Acesso em: 28 fev. 2021.
REDIKER, Marcus. O Navio Negreiro: uma história humana. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
RODRIGUES, Jaime. O Infame Comércio: Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp; Cecult, 2005.
OGOT, Bethwell Allan (Ed.). História Geral da África, vol. VII: África do século XVI ao XVIII. Brasília: UNESCO, 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/?option=com_content&view=article&id=16146. Acesso em: 28 fev. 2021.
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